26.11.06
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
Mário Cesariny
14.11.06
Refinadamente extemporâneo porque o universo não tem data aposta. Extrínseco por natureza própria e por cultura arrancada a ferros. Punitivamente lusitano mas ainda assim orgulhoso desse facto geográfico-penitente. Conservador por horror ao acaso incessante mas futurista pela infalibilidade do porvir. Entediado pela mão-de-obra humana ao serviço da gula anormal e da impertinente sobrevivência animal. Inexorável perante a estupidez. Descrente perante a civilização. Culturalmente um extravagante abcesso num organismo geral e social ainda mais pútrido. Nunca acumulador de virtudes, mas virtuosamente tentando fazer melhor. Possuidor de entendimento abrangente para o caos e de discernimento para a ordem e até para o tédio. Aprumado na nobreza do carácter. Presumo que oriundo do carácter da nobreza. E bem que podia ficar por aqui. Mas raios me partam que nunca sei ficar. Tenho ainda a teima excessiva de marrar contra o destino quando o mesmo me desdita, porque da consciência granítica é que nasce a tranquilidade de todos os sonhos. Creio bem que Deus talvez tenha complacência para tamanha teimosia e eu, humilde e finalmente sereno, agradeço demais reconhecido.
13.11.06
Para a minha suposta alma gêmea virtual, ou melhor dizendo, a minha ex-leitora predilecta: virtual é giro, ser gêmea é mais cúmplice, ser como és é supostamente maravilhoso, espero. Blogar é afinal uma treta: boa por sinal. Estar vivo tem disto também. Estar morto é mais definitivo. Estar resistindo tem muito mais de humanidade. Estar por cá é bué da nice. Estar é indiferente. Estar é. É estar. Bem-hajas.
Escorremos memórias em nome de presentes, prontos a devolverem-nos o sentido de tudo. Não há tal coisa. Um nada absoluto em forma de uma única somente reviravolta impossível de voltemos a face do porvir. Pode tudo acontecer e nada nos fará reviver ou asseverar o que quer que seja. Mistério é o sublime encanto do desconhecimento. São as rugas do tempo emaranhadas no rosto do descontentamento. E sabemos tão pouco. Tão miseravelmente pouco. Teias e demais odisseias em rios de pranto ou alegrias vãs conforme o linho da vida. Tente-se em vão acrescentar a tudo isto um objectivo, vinho tinto, poesia, amor, pictórico em retrospectiva, efusões de família ou outros prantos. Encantos também disponíveis ou falsas fés em rodapés. Modelados ao inverno da existência em demanda de verões eternos e outros feriados perenes, percorremos glórias de pouca coisa em nome de nós, agrilhoados a nós mesmos e mais egos enredados em vidas, tão somente isso mesmo. Ponto final que já tarda e nada recomeça verdadeiramente. Diria mais: abençoados pobres de espírito sem conta-corrente... ou mais projectos em mente!
7.11.06
TANGAS
Portugal está de tanga. Este é um dado adquirido. O que mais causa horror é o facto de essa mesma tanga ter sido também importada. Estamos corroídos até ao tutano, sem conseguirmos vislumbrar terapêutica económica ou cirurgia política que nos valha. Por outras palavras, encontramo-nos encalacrados nesta periferia geográfica e reduzidos à nossa insignificância. E a nossa famigerada “ciência de fátima” não nos pode acudir em nada para esta aflição. Somos os pindéricos europeus de sempre, reciclados com a moderna cagança da importação. Nesse domínio fomos brilhantes: temos tudo o que os países ricos e civilizados têm para consumir, excepto o dinheiro para isso mesmo. Aliás, temos até mais centros comerciais, per capita, do que os nossos congéneres europeus. Se, supostamente, alguns países nórdicos já atingiram a “saciedade” de consumo, nós corremos apenas o risco de sufocarmos com a baba da fome desse consumo. E estaremos tão endividados perante a Europa, ao ponto de ficarmos somente com o estatuto de serviçais. É claro que temos sempre, como alternativa, a possibilidade de desenvolver mais a corrupção tão ao nosso género.
No parágrafo atrás utilizei um plural. Mas nós portugueses não somos, infelizmente, um plural. E o sacana do busílis está aí! Esta nossa putativa democracia, tem sido sempre um fado imbróglio para o povo em geral, uma grande farra pimba para os novos ricos, uma sinfonia decadente para os antigos empresários, uma valsa coxa para a classe política e uma fanfarra ébria para a classe média. Como é fácil de constatar, andámos todos a ouvir um hino diferente, tocado, no entanto, sempre da mesma maneira, mas com uma panóplia de instrumentos desafinados e maestros esclerosados. A continuar tudo na mesma, doravante será uma desgarrada!
É certo que a crise, existente em todas as economias mundiais, não é um exclusivo ou uma invenção lusitana, mas bem podíamos ter registado a patente, alegando que antes de eles sonharem com a coisa, já nós tínhamos insónias com o tema. Agora, saberia bem receber os direitos de autor, vindos de todos os lados do mundo.
Porque raio de mentalidade saloia de ostentação se permitiram negócios manhosos que nada trouxeram à saúde da economia do país? Porque carga de água é que até os criativos da treta e as suas ideias foleiras têm de ser importados? Como é que um labrego, com desdém pela terra que é a sua, pode andar de Jeep (último modelo e ar condicionado) a fingir que é agricultor? O que fizeram durante a semana os bimbos que se pavoneiam entupindo as estradas ao Domingo? O que é que fazem durante a semana todos os que entopem as estradas a partir das 3 e meia da tarde? Como é que um país com tão baixo nível de produtividade (quase inactivo portanto) pode entrar em greve geral? Onde é que o raio que os parta de alguns empresários foram buscar a ideia de enriquecer no primeiro ano de actividade? Os tolos dos comerciantes, que põem à venda artigos com 300% de lucro, será que pensam que somos suíços? O que é que eles comem afinal, se com as prestações dos carros e da casa ainda ficam a dever dinheiro? Quem tiver respostas mande-me um e-mail...
Há dias um meu cliente holandês perguntava-me: “Só vejo Mercedes e BMWs de matrícula portuguesa, vocês são ricos?” Ao que tive de responder – “Não, temos apenas excesso de asnos a turbo-diesel!”
6.11.06
Vejez es cuando a un hombre
arrimado al fuego de la chimenea
temblando a causa de las brujas
para poner el cazo sobre el lecho
y traerle su ponche
viene ella en las cenizas
quien amada no pudo ser vencida
o vencida no amada
o alguna otra aflicción
viene con las cenizas
como en esa luz vieja
el rostro en las cenizas
aquella vieja luz de las estrellas
en la tierra otra vez.
Samuel Beckett